Valdir

          Talento. Talento para cantar. Talento para compor músicas.

          O Valdir é a pessoa mais talentosa que eu conheço.

          O talento parece algo divino, extra-humano, um presente.
          Meu pai tem a vocação para fazer o que faz. Meu pai é professor. Um educador. Tem vocação para ensinar. Vocação para ensinar aqueles que querem aprender.
          Mas vocação é diferente de talento. Vocação também é um dom, um presente. Talvez uma escolha bem sucedida. Mas a vocação não é tão exibida quanto o talento. O talento salta aos olhos (ou aos ouvidos, no caso do Valdir).
          Uma voz gostosa de ouvir. Quando começa a cantar as pessoas naturalmente param de conversar para ouvir. Naturalmente. Como se soubessem que é o melhor a ser feito. Ouvir. E o que sai da voz do Valdir quase sempre é muito bom.
          Tem quem não goste. Tem quem não goste de nada.
          Eu gosto demais de música. E gosto demais de ficar ouvindo o Valdir cantar. Se tiver cerveja, churrasco e outros amigos e outros violões por perto, melhor ainda. Pra mim essa é a receita da felicidade. Se a piscina estiver funcionando, então é o paraíso.
          A chácara da minha mãe em Marília é o lugar onde a felicidade descansa. É onde podemos tocar violão e cantar até amanhecer sem que os vizinhos nos perturbem com sua infeliz necessidade de dormir.
          A primeira vez que vi o Valdir cantando foi de tarde, num ensaio da banda Fantoches, acho que na casa do Adriano, perto da Igreja São Bento, em Marília.
          Fui com o Chico, que era e continua sendo, meu amigo de longa data e que tinha acabado de entrar na banda, cujo vocalista e compositor das músicas era o Valdir. O Chico, na noite anterior, tinha me dito: ”Cara. Tô tocando numa banda com um cara bom pra caralho. Vai ser o novo Renato Russo”.
          O Chico sempre foi de exagerar as coisas, ou de sonhar mais colorido, sei lá. Fiquei curioso e acabei indo ver o ensaio.
          Realmente o cara cantava bem e as músicas tinham umas letras que não dava pra entender direito. Como algumas do Renato Russo. Achei o pessoal bacana. O Valdir, o Marcelo (que eu já conhecia também através do Chico) e um baterista bem moleque que eu não lembro mais o nome.
          Isso deve ter sido em 1990 ou 91. Eu já morava em Florianópolis, mas voltava pra Marília a cada feriado. A partir daí fui tendo aos poucos cada vez mais contato com o Valdir.
          Ouvir e cantar as músicas do Valdir foi muito importante para mim. Percebi que tinha um cara, mais ou menos da minha idade, da mesma cidade, fazendo algo realmente relevante. Me fez encarar a vida e as possibilidades de vida de uma forma mais ampla. Até então eu tocava violão de maneira quase escondida. Eu tinha vergonha até de mim mesmo por desafinar ou errar as notas das músicas. Eu achava que, apesar de gostar muito de música, eu não tinha nascido com talento para aquilo.
          Conhecer o Valdir me fez rever conceitos. Ele fazia músicas que as pessoas gostavam. Com letras interessantes que fugiam do óbvio (e que, apesar de algumas serem muito intimistas, descrevendo situações vividas por ele, era um cara reservado e não deslumbrado com seu talento). Me fez pensar o seguinte: eu não sei cantar, mas posso fazer música também. Acreditei realmente que eu também podia fazer aquilo.
          Comecei a prestar atenção nas letras das músicas do Valdir. E prestando atenção nas letras das músicas dele, eu comecei a prestar atenção maior às letras de todas as músicas. Comecei a prestar atenção nas melodias das músicas do Valdir, e prestando atenção nas melodias das músicas dele comecei a prestar atenção maior às melodias de todas às músicas. Comecei a prestar atenção ao fato de o Valdir saber cantar as letras inteiras das músicas. Eu, até então, mal cantava os refrões. Observando que ele sabia as letras de cor, passei a escrever e decorar as letras das músicas que eu mais gostava. E passei a arriscar abrir a boca pra cantar, mesmo que sozinho em casa, com todas as janelas e portas fechadas e com as luzes apagadas. Me impressionava o fato do Valdir saber de cor as letras das canções dele. Já naquela época ele tinha mais de 40 músicas. E entendi que toda música tem uma história. Tem uma confecção, uma feitura, que pode demorar cinco minutos ou cinco décadas. E essa história da música é que faz com que o compositor se lembre dela. Quando essa história perde a relevância, a música também perde a relevância para o compositor.
          Algum tempo depois a banda Fantoches, que era uma formação tradicional com baixo, bateria e guitarra, se desfez e a maioria dos integrantes resolveu montar outra banda com um som mais acústico e arranjos de violões. A banda passou a se chamar Loboguará e as músicas estão ainda na lembrança de muita gente de Marília e de outros lugares do interior. Eles gravaram, em um estúdio em Penápolis (que é a minha cidade natal), uma fita K7 para vender nos shows e para fazer divulgação do trabalho. Essa gravação, apesar de ter sido feita com poucos recursos, ficou ótima. Para mim era um disco pronto e acabado. As músicas tinham cheiro de interior, sem serem músicas sertanejas ou caipiras ou românticas de corno, como normalmente são rotuladas as músicas feitas no interior. Eram músicas despretensiosas, com arranjos de violões despretensiosos, e ótimas para ouvir e cantar. Meio Rock rural. Todos estavam tocando e cantando bem. Enfim, uma coisa que deu certo. Passei a ouvir essa fita mais do que qualquer outra coisa. E achava que era realmente melhor do que a grande maioria das coisas que se ouviam nas rádios. Me impressionava o fato de que todo mundo que ouvia gostava. Gostava realmente. Ficavam surpresos e interessados. Lembro de ter dado carona pra uma menina que eu não conhecia, em Florianópolis, e ela perguntar que som era aquele, e que ela tinha gostado muito, etc. Eu, que nessa época já tinha perdido um pouco a timidez, passei a cantar as músicas para os meus amigos em Florianópolis, que também passaram a cantá-las. E assim as músicas daquela fitinha K7 foram passando de boca em boca e ficando na lembrança das pessoas.
          As músicas fizeram tanto sucesso entre quem ouvia que a banda foi atrás de empresários e essas coisas todas. Acabaram se mudando para São Paulo e praticamente regravaram as músicas com mais dinheiro e mais estrutura. Ficou uma bosta (na minha sincera opinião – espero que ninguém fique magoado comigo). Perdeu aquele cheiro do interior. Perdeu a espontaneidade. Ficou um disco pretensioso e ruim. Não deu certo. A banda acabou logo depois.
          Valdir voltou de São Paulo e foi trabalhar no Banco do Brasil, em Marília. Depois, como não é bobo nem nada, conseguiu uma transferência para trabalhar na agência de Ipanema, no Rio de Janeiro.
          Foi nessa época que eu fui pela primeira vez visitá-lo no Rio. Ele morava numa quitinete na Barata Ribeiro, em Copacabana, junto com um cara que estudava Economia ou Contabilidade, sei lá. Me recebeu muito bem e tomamos vários chops e tocamos violão. E fomos a uma loja de música em Copacabana onde tinha muitos e muitos discos bons. Coisas que não se encontram em qualquer lugar. Comprei 4 CDs, um melhor que o outro: Rita Lee & Tutti Fruti (que tem Ovelha Negra, Agora só Falta Você); a trilha sonora do filme Rumble Fish (O Selvagem da Motocicleta), do Stewart Copland – ex baterista do The Police; Acabou Chorare – dos Novos Baianos e Tábua de Esmeraldas – do Jorge Ben. Ficamos ouvindo principalmente esses dois últimos, que ele adorou. O Acabou Chorare impressiona por ser muito bem tocado e pela voz da Baby Consuelo (que gravou o disco com 16 anos). O Tábua de Esmeraldas é genial e todo acústico. Lembro de ter ouvido também o disco Lóki, do Arnaldo Batista, que eu nunca tinha ouvido e que também é muito bem tocado e totalmente autoral, pra não dizer doidão. Foi nessa viagem também que, meio de passeio, fomos à Niterói onde o Valdir queria se informar a respeito de um curso de mestrado em Cinema. Acabou fazendo o curso e escreveu uma tese de mestrado sobre Glauber Rocha.
          Minha amizade com o Valdir vem lenta e gradualmente crescendo. Fui algumas outras vezes visitá-lo no Rio e fui sempre muito bem recebido. Convidei-o para conhecer Florianópolis centenas de vezes até que me mudei de lá. Convidei também a ir à Curitiba, enquanto estava morando lá. Nada. Agora estou morando aqui em Resende, que é pertinho do Rio. Espero que ele venha para tocarmos violão aqui em casa, que tem um quarto com a acústica muito legal para se tocar violão e cantar. E com varanda e redes para ver o tempo passar e escrever livro pros amigos.
          O Valdir acaba de gravar um disco com algumas músicas muito boas e arranjos muito bacanas, feito com amigos dele de Londrina-PR. O disco foi batizado de “Lixo Extraordinário” e as músicas estão na Internet para quem quiser ouvir. Eu recomendo “Acrobatas Epiléticos”, “Meu coração agora é Pedra” e “Rosa dos Ventres”.
          Valdir, eu espero que mais pessoas tenham acesso à sua voz, suas músicas e sua companhia.
          As coisas, às vezes, demoram a acontecer.
          Eu acredito em semear e colher. Você vem semeando há bastante tempo. A colheita há de vir boa.
          Boa colheita.
          Farte-se.

2 comentários:

Batone disse...

Rato, toda vez que leio o capítulo que vc dedicou à nossa amizade me emociono de contorcer as vísceras. Obrigado pelo retrato generoso. Tua expressão direta, sincera e leve, salienta o autor por trás da escrita, legítima transcrição do caráter para o caractere. Amigo, obrigado por tudo, pelas visitas constantes, pelos momentos tranquilos, pela inspiração silenciosa. Obrigado por esse livro, um presente de ouro intangível, carrego-o já pela vida afora e para outras vidas.

Eu e vocês disse...

Eu é que agradeço. Se hoje componho música (mesmo que somente umas duas por ano) é muito pela admiração que tenho pelas suas.
Abração, e volte sempre! (no mundo virtual as visitas aos amigos é mais fácil - a gente não precisa nem sair de casa!).
Até mais,
Rato