Pai

          Pai.

          Me lembro de algumas coisas. Talvez você se lembre também.

          Lembro de ter uns 4 ou 5 anos. Estávamos em Rio Claro. Você ia à casa de um amigo seu. Eu pedi para ir junto e você me levou. Chegamos na casa e você tocou a campainha. Era começo de noite, talvez umas 8 horas. Seu amigo abriu a porta e, quando eu olhei para ele, vi que ele não tinha uma mão (ou o ante braço, não lembro direito). Minha reação foi automática, e questionei em voz alta:
          - O que aconteceu com o braço dele?
          Ouve um silêncio. Que durou alguns segundos. Depois seu amigo, com muito bom humor, deu uma risada e levou tudo na esportiva. Lembro de nós três entrarmos na casa dando risada.
          Outra lembrança é de 1979, quando você estava saindo de carro para viajar e eu, mais uma vez, fiz questão de ir junto. Para mim não tinha a menor importância o destino, eu só queria ir junto. E acabei indo com você à cidade de Assis, num jantar para recepcionar um professor que acabava de voltar do exílio, chamado Fernando Henrique, que uns 20 anos depois iria se tornar presidente do Brasil. Lembro que na casa havia uma mesa de pingue-pongue onde fiquei jogando com outras crianças. Até que escorreguei e bati a cabeça na quina da mesa. Nada grave, mas o suficiente para guardar na memória.
          Uns 3 anos depois conheci, em outra viagem junto com você, outra pessoa que também acabaria se tornando presidente do Brasil. Você, como um dos fundadores do PT em Marília, estava indo participar de um comício na condição de candidato a deputado. Você e a mãe tinham se separado e eu estava morando com você. Fomos para a frente da catedral da cidade de Presidente Prudente, onde havia um caminhão com um microfone e alto-falantes improvisados para o comício. Você se apresentou e subimos na caçamba do caminhão. Havia um homem barbudo, com camiseta rasgada, falando para umas 50 pessoas. O homem barbudo era um ex-sindicalista que tinha liderado uma greve geral em 1979 e, depois, fundado um partido político para poder disputar eleições e defender os interesses dos trabalhadores. Falava com grande convicção e era chamado pelo apelido: Lula. Depois do comício todos fomos comer feijoada numa casa simples, de madeira, de uma militante do PT. Depois dormi e não lembro como voltamos à Marília.
          Outra lembrança é de quando morávamos no apartamento da Avenida 9 de julho, quase esquina com a Rio Branco, ainda em Marília. Estávamos voltando para casa e você decidiu entrar numa farmácia, na Rua São Luiz. Comprou algum remédio, pasta de dente e, quando chegou ao caixa, pegou umas duas embalagens de um negócio chamado “Jontex”. Eu na época tinha uns 12 anos. Sabia de algumas coisas por ouvir falar, sem nenhum conhecimento de causa. Ainda ali no caixa perguntei o que era. Você fingiu que não ouviu, pagou a conta e fomos embora. Depois, pacientemente, no caminho até o apartamento, você foi me explicando o que era aquilo e qual sua finalidade. E eu fui escutando, envergonhadíssimo.
          Muito tempo depois, lembro de nós dois andando de ônibus em Florianópolis. Ônibus lotado, nós dois em pé. A linha era o “Expresso”, que vai do centro à Universidade Federal de Santa Catarina. Você estava lá para participar da banca de mestrado de alguém. Eu estava lá, cotidianamente, indo estudar engenharia. Imagem inusitada que eu sabia que não iria mais se repetir.
          As lembranças são como as paixões. A gente tem pouco controle sobre elas. Algumas ficam gravadas como tatuagem. Outras simplesmente desaparecem. E não sabemos direito por quê.
          Pai.
          Para mim, o exemplo.
          Aliás, muitos exemplos.
          Exemplo de honestidade.
          Num país onde os honestos são tratados como idiotas ingênuos que seguem as leis, tenho a coragem de ser honesto. Tenho ainda a paciência de ser tratado como bobo por quem se julga “esperto”. Tenho ainda a esperança, de que esse país seja um lugar civilizado. Com cidadãos e governo cumprindo seus deveres e obrigações. Tenho ainda esperança. E ainda tenho a certeza que isso é imprescindível. Tenho a certeza que isso é muito forte em mim. Ainda, agora e sempre. Muito se deve ao seu exemplo.
          Exemplo de liberdade. Como valor maior. Muito maior que a força. Valor humanitário, que prescinde nacionalidades e religiões. Liberdade para pensar e ser o que a gente puder. Liberdade ensinada pela educação sem preconceitos e pelo respeito às opiniões alheias.
          Outro grande exemplo é sua retórica. A sua admirável retórica. Isso me faz lembrar um debate de campanha para a reitoria da Unesp de Marília em que presenciei você ser alvejado (talvez esse seja o melhor termo) por todo tipo de pergunta emocionada e, às vezes, raivosa, de uma platéia grande e claramente hostil à sua candidatura. E lembro como você não se deixou levar pelas emoções e respondeu, de forma objetiva, todas as questões, “desconstruindo” as perguntas, explicitando as incoerências dos questionamentos. Impressionou-me muito sua coragem e habilidade para, sozinho, usando argumentos lógicos e pertinentes, não se curvar diante daquela platéia.
          Lições. Exemplos. Que aprendi e aprendo com você.
          A ausência de imposições. A liberdade para deixar os filhos fazerem seus destinos sem nenhum tipo de cobrança. Lições de desapego.
          Gostaria de saber mais de você. Sua infância. Seus pais. Você conheceu seus avôs? Como eles eram? O que você fez nos anos 50 e até 64?
          Te desafio a escrever sobre isso. Memórias. Para que meus filhos (se eu vier a tê-los) saibam mais sobre seus avôs e bisavôs do que eu. E para que você, que escreve tão bem, tenha o prazer de escrever sobre outras coisas além dos assuntos de sua rotina de trabalho.
          Beijo. E tudo de bom.
          Te amo.

Um comentário:

Unknown disse...

RATO!!!!! ESTOU MARAVILHADA. MAS PRECISO TER UM LIVRO DESSE COMIGO NA MINHA CABECEIRA. VC É MARAVILHOSO. TE AMO MUITO. MUITOS BJOSSSSSSS.