Secco

          Secco, meu amigo, como vão as coisas?

          Estou aqui em casa, em Resende, na rede. Segunda-feira. 9:30 da noite. Ouvindo os cachorros dos vizinhos latindo. Os grilos do terreno da frente. Um friozinho de nada. E uma solidão da porra.

          Siana esteve aqui nesse feriado de Corpus Christi, que começou na quinta-feira passada. Ficou até domingo.
          Já faz 10 meses que estou aqui. E ela não. Sinto uma saudade fudida. Mas tenho procurado trabalho pra ela por aqui todos os dias. E tenho rezado. Então ela há de vir.
          Vim pra cá para trabalhar e, mais uma vez, priorizei o trabalho à minha vida pessoal. Sabia que iria ficar um tempo aqui sozinho, mas não pensei que fosse demorar tanto para que ela viesse.
          Um dos motivos para tomar a decisão de vir trabalhar aqui foi a necessidade de descansar um pouco, diminuir o ritmo em que estava trabalhando desde que me formei e saí de Florianópolis. Aqui o trabalho é mais organizado e sobra tempo e paz para fazer outras coisas. E eu estava precisando de um pouco de sossego. E continuo achando que será bom também quando a Siana vier e pudermos ter uma vida mais tranqüila e confortável.
          Meu dia à dia aqui é acordar cedo (6:15), tomar banho, dar comida pra cachorra e ir trabalhar. Volto lá pelas 19:00, faço alguma coisa para comer e depois passo as noites lendo, escrevendo e tocando violão. Estou lendo muito sobre música. Biografias, autobiografias. Livros de entrevistas com músicos e compositores.
          Estou agora lendo uma autobiografia do Johnny Cash. Figura interessante. Filho de camponeses do interior dos Estados Unidos. Tinha uma voz muito grave. Começou tocando música country americana e gravou seus primeiros discos na mesma época e gravadora que Elvis Presley, Carl Perkins e Roy Orbison. Virou uma das referências do rock. Se viciou em barbitúricos. Gravou disco dentro de prisão (embora nunca tenha sido preso). Já bem velho fez uma série de discos com músicas de gente bem mais nova. Regravou por exemplo uma música chamada “Rusty Cage”, do Soundgarden, uma banda dos anos 90. A regravação, acústica, ficou muito boa e mais forte que a original, que é cheia de guitarras distorcidas. Morreu no início dos anos 2000, de câncer. Teve um irmão, que era como um herói para ele, e que morreu com 15 anos (quando ele tinha 13). Esse irmão continuou acompanhando ele por toda a vida, em sonhos. E nos sonhos o irmão sempre dava conselhos pra ele. E sempre tinha 2 anos a mais que ele. O irmão foi envelhecendo junto com ele, nos sonhos. Mesmo com mais de 60 anos, continuava sonhando com o irmão. E o irmão que morreu com 15 anos aparecia nos sonhos com 62 anos, sempre dando conselhos ao irmão mais novo. (Isso que dá encher o cabeção de bolinhas...).
          E você? Como vai a vida em Tapejara?
          Plantando soja?
          Trabalha sozinho?
          É interessante a vida. O tal do Johnny Cash saiu das plantações de milho que não davam futuro e foi tocar rock. E você largou de tocar rock, talvez porque não tava dando futuro, e foi plantar soja.
          Mundo que dá voltas!
          Eu mesmo quero ainda dar mais algumas voltas nesse mundo!
          Quando era moleque lá em Marília queria ir morar longe, na praia. Sabia que o mundo era maior que aquele interior cheio de gente cumprindo uma sina parecida. Queria ir embora dali. Conhecer outras pessoas. Outros ambientes.
          E fui. Pra Floripa. Dei uma revirada no meu mundinho. Lá em Floripa tive uma vida largada, sem responsabilidades, sem muito dinheiro, sem muita preocupação. Durante 8 anos.
          Conheci um monte de gente completamente diferente das que eu conhecia em Marília. Gente como você, com mais experiência de vida que eu (apesar de ser mais novo). Mais liberdade na cabeça e mais coragem na atitude. Fui (e continuo), do meu jeito estranho, tentando aprender com os outros. E acabei aprendendo comigo mesmo muita coisa. Aprendendo com as experiências que vivi.
          Até que encheu o saco viver largado e sem grana nem responsabilidades. Me formei. Me mudei de Floripa e fui trabalhar como engenheiro. Dei outra reviravolta no meu mundo.
          Trabalhei como burro. Mas logo percebi que era mais fácil pensando. Assumi responsabilidades. Comecei a fazer as coisas sem reclamar e percebi que tudo fica mais fácil assim. Questão de lógica: se eu fui fazer uma coisa de livre e espontânea vontade (ou por inevitável necessidade), por que reclamar? Reclamar do quê? De quem? E pra quê? Caso as coisas estejam muito erradas devemos ter atitude e responsabilidade para alterarmos o que tivermos capacidade para alterar. Mas ficar só reclamando, definitivamente, não resolve nada.
          Aprendi, e continuo aprendendo muito com o trabalho. Aprendi a ser mais objetivo. Aprendi a ter mais segurança. A confiar mais em mim mesmo.
          Aprendi que as boas maneiras são o que diferenciam as pessoas. E isso não tem nada a ver com classe social ou educação. Ou nacionalidade ou fé. E me lembro de você de novo. De como você, e a Lori também, sempre me receberam muito bem na casa de vocês. Quantas vezes dormi lá! Obrigado. Espero que eu tenha aprendido um pouco dessas boas maneiras. Espero poder sempre retribuir.
          Agora, aqui em Resende, estou de certa forma dando mais uma reviravolta no meu mundo. Da mesma forma que depois de 8 anos de vida largada em Floripa eu me enchi o saco e resolvi trabalhar, agora, depois de quase 9 anos trabalhando pra caralho eu também estava ficando de saco cheio.
          Na vida, o que me desperta mais interesse são as artes. Aquela sensação de arrepio na alma diante de uma música ou de um filme. Espero um dia viver em função disso. Esse livro é um primeiro passo nessa direção. Qualquer grande caminhada sempre começa com um primeiro passo (nos ensinam os livros baratos de auto-ajuda).
          Isso não quer dizer que eu não goste de trabalhar como engenheiro. Gosto sim. Tenho orgulho do trabalho que faço. E tenho sido razoavelmente bem sucedido nessa profissão. Mas me agrada a idéia de fazer outras coisas na vida. Acho até estranha a idéia de passar uma vida inteira fazendo a mesma coisa. Porém tenho tranqüilidade e nada é pra já. As coisas acontecem sempre da melhor forma possível. E quando o melhor for mudar, eu mudarei. Naturalmente.
          Quem sabe quanto trago ainda tomaremos juntos?
          Quem sabe quanta dor e alegria ainda viveremos?
          Secco, meu amigo, agora já está tarde (no meu mundinho atual) e eu vou dormir.
          Obrigado pelas boas maneiras.
          Boa noite.

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