Lu

          Para descrever o Lu seria preciso outra obra completa do Dostoiévski.


          Personagem complexo e interessantíssimo.
          Inteligentíssimo, porém com dificuldades de desvendar o simples. Primeiro entende e só depois, muito depois (às vezes nunca), compreende.
          Meu irmão.
          Meu herói quando eu acreditava em heróis.
          Meu modelo quando eu precisava de um.
          Meu exemplo, que eu aprendi a não seguir para criar minha própria personalidade.
          O Lu é a racionalidade em pessoa. Quer racionalizar até a fé. E, às vezes, entra em conflito consigo mesmo. Porém, com sua racionalidade, questiona e põe por terra tudo o que não é forte o suficiente para sobreviver sem razão.
          Por outro lado, o Lu parece incapaz de compreender o que é irracional (é claro, meu irmão, que essa frase não tem lógica nenhuma). Coisas que a gente sente e não sabe explicar. Coisas que, se tentamos explicar, não fazem o menor sentido. A intuição. A sensação. A vibração. A natureza das coisas. A força. A violência. A ira desmedida. A submissão voluntária. Por quê, por quê, por quê? Penso que você deve ficar se fazendo essas perguntas. E, como não encontra respostas, continua questionando, e questionado, e indo mais fundo, até que uma razão seja encontrada. Ou mais uma incoerência seja represada.
          Para mim, mais razão tem aquele que sente sem entender, aquele que compreende sem raciocinar (aprendi com Alberto Caeiro). E não me venha cobrar qualquer lógica racional. A razão (para mim) é somente mais uma capacidade que o corpo humano, através do cérebro, nos propicia. É, e será sempre, limitada. É claro que está sempre em expansão. Mas será sempre limitada. Da mesma forma que nosso tato tem limites físicos: sentimos o quente e o frio dentro de certos limites. Da mesma forma que nossa audição tem limites físicos de amplitude e freqüência. Da mesma forma como nossa visão tem limites (para claro e escuro). A razão, e a capacidade de encontrar razão, tem limitações. Ninguém me falou isso. Ninguém me provou isso. Ninguém escreveu isso – que eu saiba – é somente uma impressão minha, uma idéia que ninguém me provou estar errada.
          É provável que você, meu irmão, possua argumentos para refutar todas essas proposições. E é provável, como já aconteceu outras vezes, que não cheguemos a nenhuma conclusão... Mas é o tipo de conversa que conversamos, é o tipo de assunto que me vem à cabeça quando penso em você.
          Mas deixemos de papo cabeça...
          Meu irmão foi um garoto prodígio. Aprendeu a ler praticamente sozinho. No primário e colegial era tido como um aluno excepcional. Muito acima da média. Praticamente não estudava. Eu nunca o vi sentado com um caderno, estudando. Por outro lado, lia tudo que lhe caísse à mão. Se a aula era de gramática ele fazia questões sobre semântica (isso, no colegial). Se a aula era de inglês, ele ficava escrevendo poesias em inglês. Se a aula era de matemática, o professor o inscrevia num concurso de matemática.
          Lembro de uma professora de ciências que eu tive no colegial, Dona Telma, que anteriormente tinha dado aulas para o Lu. Ela me dizia: - Você, filho da Maria Cecília e do Celestino, IRMÃO DO LUÍS HENRIQUE, como é que não está entendendo?
          E eu compreendia muito bem. Embora não entendesse quase nada de ciências.
          A Dona Telma dizia que o Lu era o melhor aluno para quem ela tinha dado aulas (e ela estava para se aposentar!).
          Eu me achava o pior dos burros. E era. Me achava burro. Achava que o Lu tinha nascido inteligente e eu tinha nascido burro.
          Deixei de ser (pelo menos deixei de me achar) observando o Lu. Um belo dia, lá pelos 13 anos de idade, fiquei de recuperação em todas as disciplinas na escola. Perdi umas 3 ou 4 semanas das férias. O Lu e o Zedu já tinham passado de ano desde o terceiro bimestre. Comecei a pensar (já era hora!) que o que diferenciava o Lu de mim é que ele lia demais e eu não lia nada. Resolvi que iria ler o maior livro que tivesse na estante da sala. Peguei o livro e comecei a ler. Demorei uns 6 meses para chegar ao final e, quando o livro acabou, fui perceber que era o final da primeira parte! Tinha outro volume completo que era a segunda parte do livro! Quando finalmente terminei me senti recompensado. Aquele livro realmente mudou a minha vida e depois dele eu nunca mais me achei burro. O personagem principal do livro é um seminarista cheio de fé e dúvidas cristãs, dentro de um mundo cheio de questões reais que ele não sabe resolver. O livro é “Os irmãos Karamazov”, do Dostoévski citado no início do capítulo. Muito difícil de ler e impossível de esquecer.
          Continuando a falar sobre o Lu:
          Tem uma cultura impressionante. Fruto de leituras compulsivas (que, espero, um dia admitirá ser um vício, um escapismo). Pode falar horas sobre qualquer tipo de assunto. Os preferidos são música, televisão e futebol, assuntos que ele conhece com muita profundidade. Além, é claro, de literatura. Literatura de todos os tipos: romances, jornais, revistas, gibis.
          Outra característica marcante de sua personalidade é a teimosia. Burro empacado. Se o mundo todo diz a ele que ele está errado, ele questiona o mundo. E assim vai.
          O Lu me faz questionar quase tudo que está ao meu redor. As bases morais e sociais que sustentam a personalidade de cada um. Para quem não o conhece, pode achar esse papo todo, uma grande besteira. Para quem o conhece, sabe do que estou falando.
          Pensa muito, mas não fala. Não fala o que pensa. Fala o que raciocina.
          Mas, graças a Deus, o Lu não é sempre tão sério. Aí então, como a maioria dos mortais, se deixa viver e ser uma pessoa adorável. Uma referência para tantas outras. Um aglutinador. A casa para onde os amigos vão sem precisarem ser chamados.
          Na minha infância eu não desgrudava dele. Era minha principal referência. Mais que meus pais. O que ele fizesse eu faria, se conseguisse. Eu o considerava um gênio. Alguém que nasceu com um dom especial: inteligência. Eu era só um garoto comum. E como garoto comum eu deveria aproveitar ao máximo o fato de ter nascido irmão de um gênio.
          O Lu me ensinou toda a (pouca) teoria que eu sei de música, quando eu tinha uns 13 ou 14 anos. De teoria não aprendi mais nada ou quase nada. Tenho um ouvido curioso para músicas e sons e, por isso, toco violão bem melhor que ele. Mas a teoria musical, tons, semitons, escalas maiores, menores, o pouco que eu sei aprendi com ele e com o meu amigo Chico.
          Um de meus filmes preferidos é “O Selvagem da Motocicleta”, em inglês: “Rumble Fish”, do Coppola, com Matt Dylon e Mickey Rourke. Quando assisti foi inevitável a comparação entre os dois irmãos do filme e eu e o Lu. Um se dá bem em tudo, é inteligente e tem uma cabeça aberta. O outro, tenta imitar o primeiro em tudo, mas não tem nem seu talento nem sua inteligência. No filme, o “motorcycle boy” fala para o irmão que ele deve ir conhecer a praia, a Califórnia. É assim que o filme acaba, com o “Rusty James” chegando numa praia.
          Da mesma forma que no filme, eu também fui conhecer a praia. Fui morar em Florianópolis. Conheci e vivi diversas situações e abri minha cabeça. Hoje me identifico mais com o “Motorcycle boy” do que com o “Rusty James”.
          Voltando ao Lu, para mim existe uma palavra que para ele é quase um tabu: coragem. Não que ele seja covarde, não acho isso, muito pelo contrário, é preciso muita coragem para ser tão questionador, não só com palavras, mas com atitudes de vida. Mas é visível sua recusa a situações de disputa, de atrito, de briga, de luta, de violência. Não estou querendo pregar a violência, o confronto físico. Mas entendo que disputas são naturais e, em última instância, é o que direciona o destino de todos nós. O Lu parece recusar totalmente esse raciocínio e evitar a todo custo situações de conflito onde outras coisas além do puramente racional passam a agir. No dia a dia de nosso trabalho e de nossas relações sociais, é natural que disputas aconteçam, até de forma imperceptível. É natural que cada um defenda o que entende ser melhor para si mesmo e para sua família, sua casa, sua vida. E nessas disputas entram outros fatores além da razão: o dinheiro, a força, a intimidação, a política, o carisma, a ética de cada um, e a violência, a raiva, a ira, o ciúme, a paixão, a fé, a excitação, o sexo, a intuição, a confiança, a auto-estima. Todos, fatores complementares à razão. Me parece que o Lu valoriza em demasia a razão e foge das disputas. Meu irmão, lutar faz parte da vida. Perder e ganhar. E assim continuamos vivos e direcionando, na medida do possível, nossas vidas. De acordo com o que queremos ou sentimos. Lutar não é necessariamente ruim. Mas devemos sempre lembrar do livro “A arte da Guerra”: o grande guerreiro ganha sem lutar. Vence a disputa sem lutar.
          Como disse, descrever o Lu não é nada simples. E eu não tenho talento para tanto. Mas tenho o amor necessário para dizer: Te amo. Fique tranqüilo que eu te direi sempre o que eu acho das coisas, se você me pedir a opinião. Se depender de mim, você nunca ficará sozinho (mesmo rodeado de um monte de gente). Eu te direi o que penso, mesmo que isto te machuque. A mim, quase sempre machuca. Mas prefiro, com você, dizer sempre o que penso.
          De novo, te amo.
          Beijo.
          Rato.

Um comentário:

Waldir disse...

Eu conheci o Lú nos meados dos anos 80. No meio daquela efervescência toda que produzia boa música e porres homéricos regados a pinga com mel. E concordo com vc, Rato. O Lú sempre foi racional. Racional até para amar. Nas entrelinhas, conheci uma pessoa de princípios. Nunca fugiu da luta. Um Leão. Quando ele deixa algo de lado, é porque não vale a pena. O Lú tem consciência e magnitude. Essa é só uma face da sua genialidade.